terça-feira, 26 de agosto de 2014

Caminho de Santiago Central Português - Parte 1

Dia 2 – Canelas (Rechousa) a Vilar – 30 km

Acordamos com um dia chuvoso e intenso nevoeiro, prometiam não facilitar o nosso caminho. Ajustamos uma vez mais as mochilas e de repente decidimos em não levar a colchonete, não só pelo peso, mas principalmente pelas suas dimensões (descobrimos posteriormente que foi aposta acertada). Recorremos ao guarda-chuva e ao casaco quase impermeável para nos protegermos da chuva, de seguida iniciamos o caminho com muitas incertezas mas muito entusiasmo, tudo isto era novo para nós e embora eu já tivesse experiência de algumas caminhadas no tempo de escutista, esta viagem seria totalmente diferente. O dia anterior, mesmo com uma etapa tão curta e sem a mochila já me tinha presenteado com uma bolha, conhecendo os meus pés já estava a contar com isso, mas não tão depressa...

Até chegar à ponte D. Luís não há nada de novo para ver, mas do cimo do rio a paisagem para ambas as ribeiras (Gaia e Porto) é fenomenal, mesmo no alto do tabuleiro superior sentimos-nos pequeninos com o contraste da Serra do Pilar. Não faltam indicações, basta procurar as setas amarelas e são realmente muitas, algumas pintadas com recurso a uma trincha outras com aspecto profissional, mas não que há enganar, se não encontrarem nenhuma indicação durante umas centenas de metros seguidas provavelmente perderam a saída. Após à Sé do Porto existem duas opções (eu prefiro ir pela esquerda e espreitar a paisagem), mais à frente após a Igreja da Misericórdia podemos seguir em frente e ir por Braga, ou virar à esquerda em direcção a Barcelos (o caminho de Braga ficou para uma próxima). Continuando o caminho oficial chegamos à Rua de Recarei, esta é enorme! Pelos guias que tinha lido existia uma alternativa que iria atravessa a N14, tínhamos planeado seguir este caminho, mas não nos deparamos com a saída e continuamos “sempre em frente”. Ponderamos pernoitar em Vilar de Pinheiro, mas continuamos mais um pouco (não nos sentíamos cansados e ainda era cedo) como tal paramos em Vilar, procuramos alojamento de peregrinos, mas sem sucesso. Como estávamos próximos de casa, pedimos à mãe da Andreia que fez o favor de nos vir buscar para irmos dormir a casa.


Dia 3 – Vilar a Barcelos – 39 km

A “sogrinha” madrugou e fez novamente o favor de nos levar de volta até ao ponto de paragem do dia anterior, o céu já não ameaçava mau tempo e a previsão meteorológica não sugeria chuva para os dias seguintes, mesmo assim levamos uns ponchos impermeáveis por precaução, que só no final da viagem iriam confirmar se foram boa ou má opção. Com nevoeiro cerrado, por estradas em paralelo envoltas por enormes milheirais, raras vezes nos cruzávamos com viaturas ou peões. O burburinho e agitação das cidades ficava cada vez mais longe e embora estivéssemos perto do Porto tínhamos a sensação de que já estávamos longe de casa e qualquer civilização, as pernas moviam-se mecanicamente, a sensação de peregrinação invadia a mente e sem qualquer plano para o momento seguinte limitávamos-nos a caminhar. A estimativa que tinha feito no dia anterior previa entre 28 a 30 km para este trajecto, mas ao chegar a São Pedro de Rates com mais de 20km feitos torci o nariz com desconfiança…

Fomos a um bar para almoçar qualquer coisa leve e com satisfação vimos o orgulho do dono do bar ao receber peregrinos, fez questão que assinássemos o livro de presenças (já tinha uma meia dúzia de livros totalmente preenchidos) e tirou uma foto connosco. Conversamos durante algum tempo e confirmou-me que até ao albergue em Barcelos esperavam-nos mais de 16km, o que nos deixou algo desanimados, as bolhas já me incomodavam muito, as costas da Andreia queixavam-se do peso da mochila e o calor era muito. Não tínhamos alternativa, arrancamos no mesmo registo mecânico e automático mas a paisagem mudou negativamente, zonas habitacionais, estradas movimentadas e o cansaço não permitia usufruir do caminho com qualidade. Pouco antes de chegarmos a Barcelinhos estivemos a reajustar a mochila da Andreia, o peso estava praticamente totalmente assente nos ombros e não na cinta o que obrigou a paragens e cansaço desnecessário, fizemos os ajustes necessários e as diferenças foram substanciais! Uma mochila ajustada correctamente sente-se uma diminuição de carga considerável. 

Continuamos a caminhar e ao fim da tarde chegamos ao centro de Barcelos, sentamos-nos numa esplanada para um merecido gelado. Estávamos cansados, desgastados, sujos, plantas dos pés a arder mas com um elevado grau de satisfação pelo objectivo do dia estar concluído. Iniciamos o processo de fim do dia que viríamos a repetir constantemente: lavar roupa, tomar banho, hidratar os pés, desinfectar e furar as bolhas dos pés. Jantamos num restaurante bastante económico (3€ por pessoa) e fomos descansar para o albergue onde conhecemos um peregrino de Barcelona que tinha iniciado o caminho no Porto e várias vezes se cruzou connosco até à chegada a Santiago de Compostela, precisamente no mesmo dia. Durante essa conversa acompanhada com fumeiro fatiado, entre diversos assuntos confidenciou-nos das rivalidades existentes em Espanha entre as diversas províncias, encontrava-se um ciclista das Astúrias que tinha iniciado o caminho em Lisboa, rimo-nos em conjunto e qualquer rivalidade desapareceu! Foi tema de conversa o “Peter”, este peregrino tinha começado a sua viagem à mais de um ano na Polónia, caminhou até Roma, decidiu continuar até Paris, sem desistir desceu até Saint Jean Pied de Port, percorreu o caminho Francês até Santiago de Compostela e quando chegou, algo o impediu de parar, pelo que seguiu em direcção a Fátima, cruzamo-nos com ele no primeiro dia da nossa jornada e descobrimos agora que tem um limite de 6€ diários… Percorreu milhares de kms com este limite, sem desistir, dormindo em mosteiros, albergues gratuitos, igrejas ou mesmo cemitérios ao relento. Ficamos com um brilhozinho nos olhos após esta conversa, sentimos-nos privilegiados e adormecemos tranquilos e em paz.


Dia 4 – Barcelos a Ponte de Lima – 36 km

Pouca luz raiava e o Eduardo e a Diana estavam à porta do Albergue para iniciarem o caminho deles e seguirmos em grupo a partir deste ponto. O entusiasmo deles era muito, cantavam e saltavam de euforia, algo que prometi que ia desaparecer em breve (os saltos de alegria) e comprovei ter razão no próprio dia. Considero que este troço é dos mais bonitos do caminho, ofereceram-nos fisálias e maçãs pelo caminho demonstrando o melhor da simpatia minhota. Faltavam cerca de seis quilómetros e as minhas dores nos pés eram insuportáveis, paramos em frente a um albergue particular, mas o dono aparentemente alemão, atendeu-nos com má educação e antipatia o que nos deu mais vontade ainda de chegar à pousada de Ponte de Lima que era nosso objectivo inicial.

Continuamos, pendurava o corpo nos bastões transferindo o peso possível para os meus braços, cada passo era um verdadeiro martírio para os meus pés, com bastante sacrifício continuamos a evitar paragens, embora a paisagem fosse maravilhosa não queria parar um segundo que fosse. Ao passar um parque infantil ouvi uns transeuntes a comentar “Estes vão para Santiago de Compostela, já lá fui uma vez e foi uma estafa, custou-me muito!”, questionava a amiga “Foste a pé?”, resposta “Cruzes, credo! Não! Fui de autocarro!”, ri por dentro, respirei fundo e ganhei alguma vontade. Vimos a placa que anunciava 1 quilómetro de Ponte de Lima, este último quilómetro pareceu uma eternidade, assim que vimos a pousada suspiramos de alívio, a nossa jornada estava terminada por hoje! Não me mexi mais, telefonamos para a Telepizza e após um longo duche deixei arejar os pés, como sabe bem relaxar depois da dureza de um dia como este.


Dia 5 – Ponte de Lima a Rubiães – 24 km


Acordamos cedo, aproveitamos o pequeno-almoço reforçado da pousada e despedimo-nos educadamente do recepcionista maldisposto que amuou por termos interrompido o seu jogo de solitário. O descanso é revigorante, as dores nos pés não desaparecem, mas tornam-se aceitáveis depois de 5 minutos de aquecimento, fomos directamente ao centro de Ponte de Lima procurar uma farmácia pois precisávamos com urgência de pensos para bolhas (deixei de ser o único), encontramos uma de serviço e mais uma vez atenderam com muita má disposição ao que ainda responderam que se soubessem que não tínhamos receita médica não nos tinham atendido! Ignoramos, pagamos os artigos e seguimos caminho, afinal já não faltava muito para a serra da Labruja e precisávamos de boa disposição. Cruzamos-nos com um Limarense (habitante de Ponte de Lima) que nos desejou força para a Labruja, confidenciou-nos que foi ele que colocou a placa a informar Ponte de Lima a 1km e que o fez para dar ânimo aos peregrinos, embora esta indique a distância para a periferia de Ponte de Lima. Sorrimos, agradecemos a simpatia e seguimos para a etapa “assustadora” que estaria quase a começar…

Existe um pequeno café mesmo antes da subida, aproveitamos para saborear um gelado e relaxar um pouco junto dos muitos peregrinos que paravam aqui. Encontramos dois Portugueses que iniciavam neste dia o seu caminho, com mochila bem carregada, guitarra e um cavaquinho não se avizinhava fácil o percurso, desejamos-lhes força que certamente a tinham face à quantidade de cervejas com que se abasteceram :) . Iniciamos a subida, sem dúvida dura e bastante técnica, cruzamos-nos com um peregrino asiático em direcção a Fátima, com um enorme sorriso, espanto nosso quando demos conta que trazia o calçado na mão, totalmente descalço descia a calçada de paralelos e foi impossível compreender a nossa dificuldade e dor quando vimos aquele personagem com aquela facilidade. Um casal subia a Labruja de bicicleta, ou melhor, subiam a serra a pé carregando as bicicletas claramente com extrema dificuldade. Nas últimas centenas de metros a dificuldade da subida aumenta, os bastões são fantásticos nestas situações, as pernas querem ceder e o coração acelera mas aguenta-se! O miradouro no topo tranquiliza e o cansaço atenua, a fonte com água bem fresca torna-se no prémio, agora percebemos o motivo do sorriso do asiático e também nós sorrimos.

O resto do dia foi agradável, o albergue de Rubiães é fenomenal, quase lotado na recepção disseram-nos que “aqui ninguém tem de procurar outro local para dormir, arranjamos sempre mais um colchão e espaço para mais um peregrino”, verificamos que esta filosofia não se aplica em Espanha onde a lotação de um albergue é cumprida rigorosamente. Ainda fomos a um mini mercado “já ali” fazer as compras de mercearia necessária, já estava habituado à técnica de utilizar as sandálias com as meias grossas no final do dia e os dois kms de ida e volta não custaram quase nada, os momentos que caminhamos sem mochila sentimos-nos leves!

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